O reflexo das transformações religiosas na sociedade e história

A análise da reforma protestante e seus impactos na sociedade tem sido feita já há muitos anos, e não existe novidade nas conclusões à que se chega ao lermos por exemplo “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Weber, onde ele cita o Calvinismo e suas vertentes bem como o pensamento da liberalidade econômica em favor do ganho, que essas novas teologias trouxeram, e suas consequências político-sociais nos países que abraçaram esse pensamento, contudo, não pretendo me deter nessas vertentes já tão exploradas.

Não há como falar de reforma protestante sem antes mencionar Lutero e sua atitude, sua coragem e motivações. Sem o objetivo de querer anular a motivação mais racional e aparente das atitudes de Lutero, entendo que pode ser muito proveitoso analisar um dos pontos centrais de toda essa mudança, um ponto de apoio que impulsionou todo os outros acontecimentos seguintes, falo das “95 teses” que foram afixadas na porta da igreja castelo em Wittenberg, Alemanha, em 31 de Outubro de 1517.

Lutero era teólogo e professor, conhecia bem o hebraico e o grego, e tinha acesso irrestrito à bíblia, algo raro na época, o que fez com que ele pudesse ter sua própria visão do que estava lendo, e de alguma forma fosse influenciado diretamente pelo que lia sem que a visão do sistema religioso que estava inserido o influenciasse. Isso inicia um processo ímpar dentro da Igreja Romana* da sua região, as suas pregações eram impregnadas do seu entendimento não contaminado do que havia estudado por anos na bíblia, e as pessoas se despertaram para ouví-lo, multidões se aglomeravam para ouvir de um entendimento diferente dos conceitos milenares e inquestionáveis sobre Deus até então, a novidade era irresistível, por causa de sua erudição e estudos, Lutero viajou por muitos lugares onde a igreja estava estabelecida, à fim trabalhar por essa causa, e nessas viagens ele percebeu que haviam muitos pontos questionáveis quanto à posição de certos líderes da religião que professava, havia a perversão completa dos conceitos que eram ensinados pela instituição e suas práticas ocultas.

Inevitavelmente Lutero começa a esbarrar nesses conceitos contraditórios estabelecidos entre aquilo que ele lia, ensinava e considerava como verdade absoluta (a bíblia) e as práticas da religião que se dizia divulgadora da mesma fonte dessas doutrinas, e é nesse momento começam seus conflitos internos. Uma das coisas que a história relata que mais perturbou Lutero, foi a carta do Apóstolo Paulo à igreja que estava em roma na época (que ironia divina não?), que exorta fortemente aos cristãos romanos à abandonarem certas práticas que já estavam acontecendo ali no seio da Igreja Primitiva*, como descrito :

 

“porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis. Por isso Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos dos seus corações, para a degradação dos seus corpos entre si.Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém.”(Romanos 1:21-25)

 

Esse conflito pessoal, culmina e é ao mesmo tempo resolvido, segundo o próprio Lutero, no trecho que mais tarde se tornaria sua bandeira, “O justo viverá da fé” descrito em Romanos 1:14, que diz :

 

Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: “O justo viverá pela fé“. (Romanos 1:17)

 

Lutero estava indignado com a injustiça e hipocrisia do sistema religioso que pertencia, e esse conceito é a base para a construção das suas 95 Teses que abalariam o mundo conhecido e dominado até então pelo poder religioso inquestionável de Roma. Em uma análise mais detalhada das 95 Teses de Lutero podemos entender que, por mais que ele realmente tenha sido ajudado, apadrinhado, patrocinado e etc… pelos principes Saxões Frederico e Georg da Saxônia, que obviamente estavam interessados nessa nova possibilidade de ter uma religião que contradissesse Roma, esse documento histórico expressa as motivaçõs sinceras de Lutero que poderiam se dividir em: Humanas (quase socalistas), Políticas (sobre o poder da igreja), Doutrinárias e Espirituais(ou Psicológicas), sendo estas duas últimas as mais citadas entre todas as teses.

 

Dentre esses aspectos motivacionais acima, selecionamos dentre as 95 teses as 2 primeiras motivações, para os demonstrar:

 

Humanos ou Socialistas:

 

40. A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, ou pelo menos dá ocasião para tanto.[4]

41. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.

42. Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.

43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.[6]

44. Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.

45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extorquem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.

56. Os tesouros da Igreja, a partir dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.

86. Do mesmo modo: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos mais crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?(trecho das 95 Teses de Lutero)

 

Políticos:

5. O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.

6. O papa não tem o poder de perdoar culpa a não ser declarando ou confirmando que ela foi perdoada por Deus; ou, certamente, perdoados os casos que lhe são reservados. Se ele deixasse de observar essas limitações, a culpa permaneceria.

24. Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.

25. O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura tem em sua diocese e paróquia em particular.

26. O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.

47. Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.

59. S. Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

60. É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem estes tesouros.

79. É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insigneamente erguida, eqüivale à cruz de Cristo.

90. Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e fazer os cristãos infelizes.(trecho das 95 Teses de Lutero)

 

Poderíamos tambem separar dentre as 95 Teses os aspectos puramente doutrinários e psicológicos(eu classifico como espirituais), mas nota-se que esses estão clara e indivisivelmente diluídos dentro os 2 primeiros e todas as 95 teses, apontando para a preocupação maior de alguem que não havia até então desistido do sistema, e digo isso com segurança, pois durante toda a leitura do documento, vê-se claramente que por mais que Lutero discorde das práticas da Igreja Romana e do Papa, ele não diminui sua importância eclesiástica, ele não fez apologia à quebra do sistema, Lutero apontou aquilo que estava em desacordo com a fé que a própria instituição professava, e isso trouxe muitos problemas para si. É óbvio que Lutero fala em indulgências o tempo todo, e isso pode soar com a conotação de que ele se preocupava apenas com o dinheiro, e até arrisco a dizer que toda a ajuda que ele recebeu talvez tenha sido por causa desse entendimento dúbio, mas todo o resto das teses e os livros a que se seguiram após as teses, e se verá claramente que ele luta e se arrisca pelo que ele cria, comentendo muito mais atos reprováveis ao sistema romano, como “o crime” de traduzir à bíblia para o Alemão (antes somente em Latin) e distribui ao povo, dando lhes o poder de tirar suas próprias conclusões.

Todo esse barulho, culminou no que se registrou como o grande cisma da Igreja Romana, conhecido na história como a Reforma Protestante.

Em 1520, já totalmente desligado do sistema religioso romano, Lutero escreveu uma obra entitulada “A Liberdade do Cristão”, onde diz: “…por meio da fé todos possam ser também reis e sacerdotes com Cristo, tal como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9… Somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos outros”. Lutero põe o Apóstolo Pedro, considerado o primeiro Papa, em pé de igualdade sacerdotal com o povo.

Mais adiante ele pondera: “Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero’.” (A Liberdade do Cristão, cap. 17).

Lutero simplesmente trás à tona algo que já estava escrito à mais de mil anos, a base do pensamento cristão, que o povo têm a mesma dignidade que os ministros, era possível ser religioso apenas pela fé, trabalho honesto e auxílio ao próximo. Todas as profissões e atividades eram igualmente valiosas perante o pensamento Cristão de acordo com a bíblia. Isso foi o princípio do conceito do sacerdócio de todos os cristãos, e que libertou os homens do temor e dependência do clero romano, e influenciou fortemente a economia e a sociedade às quais esse conceito foi apresentado, não havia mais a necessidade de um intermediário entre o homem comum e as bênção de Deus. Vemos isso se repercutindo claramente durante os séculos até os nossos dias, haja vista os estudos, mesmo que ao meu ver totalmente materialistas, como os de Weber e outros pensadores sobre esse episódio da história, mas certamente é algo que não se pode negar, seja qual for o aspecto.

O fato é que toda transformação religiosa profunda, independente de filosofia ou teologia, causa sim transformações na sociedade e na história, Cristo desestabilizou o sistema religioso mais eficiente e concreto conhecido da época, o judaísmo, e isso trouxe uma mudança econômica e governamental de proporçoes gigantescas. Maomé apresentou ao oriente uma religião nova que modificou a política de muitos países, e hoje a Europa inteira está em vias de se tornar um país islâmico. Fatalmente cada linha religiosa dessas, deixa marcas profundas nos territórios por onde passa, sejam boas, ruins ou ainda desconhecidas, temos os exemplos de países de linhagem protestante com a economia forte, bem como países de linhagem islâmica com as leis muito severas, países de religiões múltiplas em que os povos passam por profundos problemas sociais como Índia e alguns países africanos.

Não há como ignorar as modificações religiosas e seus impactos na sociedade, o Brasil que já foi considerado um país católico,  recebeu as características dessa herança, mas atualmente vem sofrendo uma visível mudança, o protestantismo e agora tambem recém criado “neo-protestantismo” tem invadido o país angariando cada vez mais adeptos à suas teologias, que embora se digam Cristãs, assim como a Igreja Romana dos tempos de Lutero, estas últimas(neo-protestantes) têm práticas bem questionáveis, e a principal delas é a famigerada “teologia da prosperidade” que ao contrário da teologia romana que apregoava o voto de pobreza e cobrava a indulgência em troca do perdão, fazendo um aprisionamento psicológico, essa nova vertente tem características inversas, afirmando ao homem que o mesmo têm direito de ser rico, de prosperar, que quem não prospera é porque está em pecado, e que na maioria das vezes esse pecado é o de não contribuir financeiramente as igrejas (um indulgência motivacional).

O sucesso dessa nova teologia é enorme, eles estão por toda a parte, em todos os canais de TV, em cada esquina, e atingem principalmente os bolsões de pobreza da sociedade, onde as pessoas sonham com a prosperidade que os pregadores decretam e até “profetizam” em troca de sua fidelidade financeira com a “obra” de Deus. Já existe no governo as bancadas evangélicas que têm grande poder legislativo e tambem configuram currais eleitorais, o mercado Gospel que fatura milhões mensalmente, as programas Gospel (grande parte dos canais abertos se renderam à essa programação), os canais de TV próprios (mídia é poder), os grandes eventos que arrastam multidões “em nome de Deus”, os produtos Gospel que são vendidos nas lojas e muitas vezes nas igrejas tambem, sem contar as perigosas “nações” de fiéis que aceitam o comportamento de seu líderes em face à qualquer situação abdicando às vezes da racionalidade (roubos de dízimos e etc…), bem como a assimilação irrestrita das opiniões por vezes radicais sobre sexualidade,aborto e intolerância religiosa.

Em especial no Brasil onde muitos estavam descepcionados com o sistema religioso romano, toda essa mudança religiosa encontrou um solo fértil, já está deixando suas marcas desde os anos 70, e não podemos mensurar ainda suas consequências futuras, se boas ou ruins, é difícil ignorar que esse tipo de transformação não mudará a sociedade, pois por mais que o estado e o mundo tentem se auto afirmar como laicos, a história aponta que isso é falácia, o mais confortante é pensar que talvez podemos estar na eminência de um novo cisma que mudará os rumos da história e da sociedade novamente.

 

 

Igreja Primitiva* = Igreja Cristã estabelecida pelos Apóstolos, sem templos, rituais ou líder único.

Igreja Romana* = Igreja Cristã, originária da primitiva que foi assumida pelo governo romano.

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